16.1.06

A DUPLA VIDA DE SEVERINE

Estava calor. O que já era suficiente para me deixar irritada. Mas também havia o humor do chefe, a compreensão da amiga, a impressora, o servidor de email, enfim, nada funcionava direito. Ah, era segunda-feira.

O ar-condicionado do escritório engana nossa sensação térmica pelo tato, mas a visão sempre pode atravessar janelas e nos mostrar a verdadeira realidade. Tipo um turista americano em férias pela África. Na hora do almoço, a gente sempre dá uma olhada na rua para ver se precisa levar quarda-chuva, agasalho, essas coisas que mãe sempre lembra.(Eu ainda não sou mãe.) E foi nessas que eu vi um office-boy abrindo o terceiro botão da camisa e enxugando o suor da testa com as costas da mão. Já me preparei psicologicamente.

Puxei a Mayumi pelo colarinho, sem deixar que ela salvasse o trabalho no computador, e fomos retocar a maquiagem. O elevador estava só um pouquinho superlotado. O restaurante por quilo ficava a dois quarteirões do escritório. Eu não imaginava que eles se tornariam tão longos aquele dia.

Maior solzão lá fora e eu tinha esquecido os óculos escuros, para variar.
Mas o pior estava por vir. É que não existe superlativo para pior, se não eu usaria. Lá estou desfilando toda minha elegância pelas ruas do Centro quando me pára um tiozinho, duns 40 anos, baixinho, carequinha, gordinho, supersorridente:

- Severina!

O tiozinho, como um Cristo Redentor, veio me abraçar. Controlei o susto e desviei dos braços dele educamente:

- Senhor, desculpa, acho que o senhor está me confundindo com outra pessoa.
Não adiantou. Eu continuei andando, mas o tiozinho ia me seguindo:

- Ô, Severina, faz que não me conhece!? Volta aqui...

Andando mais rápido...

- Severiiiiina! - agora em tom ameaçador.

Eu fui ficando com medo e andando mais rápido ainda. A mão da Mayumi já devia estar roxa de tanto que eu apertava. Eu precisava ser rápida e efetiva, como a Uma Thurman em Kill Bill.

- Severina, pare de fingir! - Ele pôs a mão no meu ombro. Aí eu virei onça:


- O senhor não toque em mim! Eu NÃO SOU Severina. E o senhor pare de me seguir, se não eu chamo a polícia.

O tiozinho se assustou e fez cara de arretado. Aquele monte de gente parada na rua pra ver o que estava acontecendo. Para completar, a Mayumi ainda me entra na frente dele:

- Ela não é Severina. Ela é minha amiga. Eu já vi o RG dela, O nome dela é...
Foi o tempo d'eu tapar a boca dela e puxar a japinha boca-grande pra dentro do restaurante. Com ar-condicionado. Ainda esperamos uns 5 minutos antes de levantar da mesa pra ver se o tiozinho já tinha ido embora. Louco do jeito que parecia, o tiozinho já deve ter esquecido esse episódio. Mas os meninos do escritório me chamam de Severina até hoje.

(inspirado em fatos reais, com os devidos créditos a Renata Saletti)